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quarta-feira, 28 de junho de 2017

Borboletas azuis


As meninas da minha época pegavam o pó de arroz da irmã mais velha às escondidas
Esse cosmético era cor de rosa ou cor da pele
Muito tempo depois surgiu o que chamavam sombra para os olhos
Se naquela época tivessem me consultado
Teriam ficado famosas como pioneiras da sombra azul
É que sou o inventor desse produto
Minha especialidade era o pó cintilante azul
Descobri-o por acaso
(Assim como Niépce descobriu a fotografia)
Foi passeando pelas matas quando vi um panapaná de borboletas azuis em estado de procriação
(Verdadeira cortina dependurada nas árvores)
O chão estava atapetado das que morreram
Recolhi uma porção para apreciá-las
Depois de muitas análises
Minha mão ficou azul cintilante
Igualzinho a Arquimedes surgiu a ideia
Obviamente não foi de fazer pó compacto, nem sombra para olhos.
Então enxerguei o descobrimento pelos olhos da pintura
Enchi uma lata de extrato de tomate Elefante só com asas
Não confunda minhas palavras
Não é que o elefante tinha asas
Elefante era a marca do produto
Enchi a lata com asas de borboletas
Pilei até virar pó
Nunca vi uma cor tão atraente
Igual a Césio
Era cintilante e de comportamento pastoso, embora seco
Eu usava para dar poesia aos desenhos
Depois invernizava com cola de vidro mole
Com certeza as meninas teriam ficado famosas como precursoras da sombra azul
(Juro que passaria a patente para elas)
Quem sabe teriam se projetado internacionalmente como inventoras da sombra azul cintilante para olhos.
Quem sabe as maiorais da perfumaria internacional as tivesse descoberto.
Com certeza aquelas meninas seriam milionárias.
Agora é tarde...

Amolecedor de vidros


Havia nobreza naquela árvore:
Escorria vidro
Vidro mole igual a mel de abelha
Depois vitrificava
(Isso quer dizer endurecia)
Não igual ao que Trimálquio conta em Satiricon
Mas ao ponto pedra.
Uns homens sabidos chegados de Ponta Porã
Inventaram dizer
Resina, âmbar, pez...
Era muito cientificoso o palavreado
Eu preferia acreditar na vizinha alemã:
Aquilo é choro de árvore
Como sempre fui descobridor
Descobri que mergulhando o vidro na água
Magicava verniz
Magicava cola
Tudo eu colava com vidro mole
Tudo eu envernizava com vidro mole
Tornei-me amolecedor de vidros na temporada das pipas
Como disse Lavoisier
Na natureza, tudo que é mole, endurece, e depois amolece...
E se quiser reendurece.


Estrada boiadeira

A cidade era cortada por uma rodovia
Quando ia-se a Campo Grande via-se um resto de estrada do lado esquerdo
Igual que contorno.
Dava dó daquele caminho órfão
Sem pedras
Sem piche
Sem placas de sinalização
Sem viajantes...
Nem bêbados andarilhavam ali
Às vezes desaparecia de mato
Reaparecendo adiante, acanhada,
Depois se desprezava de rio
Mas possuía algo importante:
Sabia impor-se,
Mesmo manchada de árvores, resistia.
Enquanto meu corpo viajava de carro
Meus olhos viajavam dela,
Percorrendo-a
Num verdadeiro esconde-esconde.
Por que tanta curiosidade?
Meu pai disse que era a antiga estrada boiadeira
(Onde passaram as comitivas dos desbravadores do Mato Grosso no século XVI).
Igual as telas de Hercules Florence.
Caminho do gado tocado a berrante para São Paulo
Caminho dos carros de boi transportando pessoas e víveres
Para Campo Grande, Cuiabá e Corumbá...
Caminho da Carmelita trazida do Paraguai por Manoel da Costa Lima.
O fiapo de estrada tinha modos de desprezo
Por isso fascinava
Estradas boiadeiras são partes do corpo do Mato Grosso do Sul
São bondosas
Saudosistas
Nunca mataram animais silvestres
Muitas voltaram a ser veredas
Substituídas pelas serpentes de piche.
Tudo o que é bonito fica feio por último.

Os ofaiés-xavantes


A praça Jan inchava de bugres aos finais de semana
Tinha gente velha e nova
Até criança
Atravessavam o dia versejando língua estranha
Dialeto magnífico
Tenho que aquelas palavras são ensinadas pela mata
Pois tinham sons de bichos
De ventos,
De árvores
De rios
Certa vez eu comia um doce de abóbora
(Daqueles em formato de coração)
Um bugrezinho aproximou-se e disse:
Comendo quero doça dá
Estranhei a macarronice verbal e dei-lhe a iguaria.
Ele falou mais com os olhos e gestos que com palavras
Eu tinha curiosidades igual aos Villas Boas
Curiosidade de saber indiologias
Mas os mais velhos eram arredios
Não gostavam de conversar com gente branca
Gente não índia
Eu sempre dava um jeito de aproximar-me para ouvir o incompreensível
Era uma fala verde
Silvestre
Parecia palavras de bichos
Conversa de índio traz a mata para perto
E os céus nublam de pássaros
Às vezes a pronúncia de uma vogal parece saída da língua pregada no céu da boca
Outrora parece vinda dos canglores da garganta
Uma rouquidão estranha
Às vezes era gutural grave, rápido
A praça passava o dia desfrutando índio
Já quando a tarde dava sinais de desaparecer
Eles também desapareciam
Na estrada do Sapé
Comiam mandioca com caititu e abóbora com coelho do mato.
Hoje quem sabe comem água da Urubupungá.

Sossego


Ela caminhava lenta
Era lesmática e desprovida de fala
Negra azeviche
Gorda roliça
Cabelo avolumados
Dedos das mãos e pés grossos como linguiças
Tais quais os negros de Portinari
Lábios acentuados a tomar boa parte do queixo
Nariz amplo
Bunda ao estilo das tribos Khoisa
Pernas batatudas das baianas subideiras de ladeira da Bahia
Parecia não ter reflexos.
Olhava as coisas como não as enxergasse
Havia desprezo em seu olhar
(Serenidade estranha).
Sua lentidão incomodava;
Morava num pequeno casebre de madeira.
Alguns meninos faziam-lhe troça
Atiçados por sua indiferença
Talvez quisessem ouvir a voz que ela transformou em silêncio
Ou queriam ouvir xingamentos.
Ela nunca revidou,
Não fazia mal a uma formiga
Por isso irritasse a tantos;
Era dessas que nascem com os parafusos mentais muito apertados
Não fosse pelo exotismo
Seria invisível
Embora vista apenas para pilhérias
Sossego morreu igualzinho que morrem as lesmas.