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Ambrósio Lemes Galvão e seu cavalo no Pouso Matinha - Bataguassu/MT |
A
história que será contada adiante ocorreu em 1915, e me foi narrada
pelo Sr. Ambrósio Lemes Galvão no ano de 1982, quando ele tinha 105
anos, e eu, 15.
Como sabemos, ele foi tropeiro (condutor de boiada) por muitos anos e percorreu o Mato
Grosso do Sul, Mato Grosso e vários municípios do Paraguai com suas comitivas, desde adolescente.
Como
já escrevi anteriormente, eu costumava documentar a história de
antigos moradores para amenizar a perda total de algumas memórias – e a do
próprio município, obviamente. E o fazia sempre com lápis, papel e
um gravador nas mãos.
Por sua longevidade e por seu pioneirismo, o Sr. Senhor Ambrósio significava um patrimônio humano
incalculável, fonte inesgotável de conhecimentos, embora muitos o
vissem apenas como “um velhinho centenário”. Por estar vivo naquela
época, havia a necessidade de se registrar algo. Naquela ocasião eu não tinha a maturidade e o conhecimento de História Oral, embora a vivesse na prática, pois o que eu fazia era registro de história oral. A falha foi não ter a maturidade de pesquisador. Assim, deixei de abordá-lo com a devida cientificidade.
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A fotografia deixa evidente a descrição física do meu entrevistado. Observe seu nariz longilíneo, afiilado e o recorte de pálpebra que nos reporta aos primeiros moradores do Brasil. |
Ambrósio Lemes
Galvão era um senhor muito alto e esguio. Tinha um recorte de
pálpebra do tipo mongol, rosto comprido e nariz afilado. Seu biótipo
e fisionomia nos reportavam às duas nações primeiras, que vieram
de longe fundar o nosso Brasil, e aqui se juntaram aos índios. Seus
olhos, apertados, denunciavam fortemente o sangue dos verdadeiros
donos de Pindorama. Eu era criança, tinha uns 7 anos quando o conheci.
Quando ele deixou a Matinha, veio morar num pequeno sítio que ficava no final da rua Cuiabá, onde montou um pequeno engenho de cana de açúcar, e fabricava rapaduras para venda. Naquele tempo as casas tinham despensa. Lembro-me que meu irmão José Carlos Carlos (Cebolinha) me levava quando ia comprar rapadura. Nós íamos num velho Studio Back do meu pai. Era um caminhão verde escuro, movido à manivela. Meu pai mandava buscar fardos de rapaduras. Algumas vezes eu ia a pé com Maria de Fátima, minha irmã. As rapaduras eram grandes, amarelas, deliciosas. A despensa vivia cheia. Era o doce da época, pois não havia as variedades de hoje, aliás, era um complemento alimentar, pois é muito saudável.
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Era exatamente assim as rapaduras do Sr. Ambrósio. Não eram escuras... eram amarelas. (imagem meramente ilustrativa). |
O meu contato autônomo com esse senhor deu-se muito tempo depois, quando eu o visitava para entrevistá-lo. Ele usava predominantemente camisa de manga comprida, sempre de cor única,
calças de tergal e chapéu de feltro. Apreciava botina, mas seus
últimos anos foram à base do chinelo de dedos. Foi amante de um bom
fumo de corda e café, inclusive conversava comigo degustando a
bebida e jogando cusparadas a quilômetros.
Sua
casa, de madeira pintada de azul, coberta
com telhas francesas, ficava à rua Ribas do Rio Pardo,
próxima ao prédio da Escola Marechal
Rondon. Ali eu o visitava eventualmente, sempre com
um caderno de anotação, um lápis ou o dito gravador portátil. E
como ele ficava esparramado numa cadeira quase o dia inteiro, creio
que se sentia bem com as visitas.
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"Coração de Jesus", bela folhagem que enfeitava o jardim da dona "Filó". |
O jardim da dona “Filó”, sua
esposa, era farto de crotons (haviam dois tipos: um conhecido como
brasileirinho, o outro mudava apenas a soma do vermelho), begônias,
coração de Jesus, lírio, espada de São Jorge, bromélia, copo de
leite e muita samambaia pendurada. O colorido das flores e rosas se
encarregava de enfeitar a varanda de piso queimado com “xadrez
vermelhão”, onde se distribuíam algumas cadeiras. Ali ficávamos
a conversar.
Aos
poucos o simpático velhinho desenrolava o novelo da sua vida. Vida
de tropeiro, de viajante das incontáveis veredas dos sertões
"matogrossenses", antes de conhecer a região
que seria
Bataguassu. Falava
sobre Bata, sobre sua mãe, dona Maria Leme, Sr. Isac Lopes Cardoso,
sobre o Sapê, episódios das origens do município, a Matinha, o rio
Pardo etc etc etc. Contou-me que o fundador de Bataguassu costumava
trazer sapatos para ele e sandálias e cortes de fazendas
para sua
mãe, além de vários souvenirs vindos de São Paulo e até de outros países.
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Em sentido horário: Jan Antonin Bata, Sr. desconhecido, Maria Lemes Galvão, Sr. Kubik, Ambrósio Lemes Galvão e Sr. Desconhecido (se você souber os nomes dos desconhecidos, faça comentário abaixo e colabore). |
Eram
muitas histórias, e todas cativantes aos ouvidos de quem as
valorizava muito. De vez em quando ele perguntava se era trabalho da
escola. Eu dizia que era, mas nunca foi. Dizendo isso dispensava
detalhes desnecessários e o deixava sempre à vontade, falando
o que viesse
a cabeça. Vez ou outra eu anotava algum detalhe interessante de sua
conversa e deixava para perguntar quando ele dava nova pausa. Assim
não cortava o seu raciocínio.
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Alguns pousos possuíam uma espécie de Venda, embora raros, na qual os tropeiros compravam alimentos e acessórios. |
Algumas histórias sobre fatos ocorridos em Bataguassu com outras famílias eu jamais poderei contá-las, pois traria muito desconforto a algumas pessoas, como por exemplo, filhos e netos. A lei diz que nesse caso, as memórias só podem ser
publicadas após cinquenta anos do falecimento do narrador. Ele sempre
me contava episódios vividos por ele, mas não conseguia
datá-los,
portanto eu deduzia a época de acordo com
a idade que
ele supunha ter quando o fato aconteceu. Como ele nasceu na década de
1880,
essa história se passou mais ou menos em 1915, ou seja há 101 anos,
ocasião em que ele se encontrava com 25 anos.
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Serra de Maracaju/MS - http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1041303 - O aspecto atual evidencia como as florestas matogrossenses eram hostis à época em que o Sr. Ambrósio Lemes Galvão, dentre tantos homens, transitavam esta e outras regiões em suas comitivas de gado. | | |
De
acordo com suas palavras, “o Mato Grosso era uma invernada só”,
ou seja, uma floresta quase intransponível e muito perigosa. Ele
repetia sempre que “hoje (1981) tudo estava uma maravilha. Os
tropeiros podem até roncar no caminho”. Os perigos aos quais os
peões estavam sujeitos eram dos mais improváveis, aliás, não
apenas aos homens, mas ao gado também.
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Aspecto de uma travessia de gado num grande e caudaloso rio - Foto meramente ilustrativa |
De acordo com o meu
informante, nunca uma comitiva de gado chegava inteira, pois o
percurso imputava as mais imprevisíveis avarias ao gado. Uns eram
comidos por onças, outros quebravam a perna e tinham que ser
imediatamente “carneados” e salgados, virando
carne seca;
alguns
adoeciam… tudo acontecia no transcurso. Mas a quantidade de gado
era tão grande que
os fazendeiros que a recebia, nem fazia conta quando o chefe da
“peonada”
(como dizia ele) se sentava para explicar a subtração.
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Imagem meramente ilustrativa, mostrando o contato de tropeiros com índios domesticados. |
Um
detalhe curioso – e que eu nem sabia – era o fato de
eles também
conduzirem gado de mais de um
dono numa única comitiva, além de cavalos e jumentos. A separação
dava-se ao longo do destino de cada lote, conforme iam chegando. E
o resto
retomava às estradas boiadeiras para o próximo destino.
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Aspecto de uma comitiva passando por um povoado - Imagem meramente ilustrativa. |
Assim
que a “peonada” resolvia parar, finados os penúltimos raios de
sol, se instalavam como podiam, fazendo sempre duas ou três
fogueiras em pontos estratégicos.
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Imagem atual e meramente ilustrativa de tropeiros em viagem |
O gado já havia sido reunido. O
pernoite se
dava sobre uma peça de couro, ao modo de esteira. Sobre ela
colocavam pelegos e se cobriam com palas de lã, compradas na
Bolívia. Uma espécie de poncho. Ele explicou que haviam peças de
algodão cru e lã, semelhantes a cobertores que eram obtidas no
Paraguai, e todo
peão tinha uma. Assim espantavam o frio. Nas temporadas de chuva
usavam um tecido grosso, semelhante ao que chamamos “encerado”,
ou lona, para se abrigar e cobrir as malas de víveres e munição.
Toda a
tralha era
transportada nos lombos de cavalos e jumentos.
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Aspecto de uma cozinha improvisada - Nota-se que os tropeiros toam chimarrão - A foto, de 1915, é meramente ilustrativa. |
Aquietados,
cuidavam de assar carne seca, consumida com feijão, toicinho
e farinha. A
comida de panela era preparada sobre trempes, numa peça móvel de
ferro. Normalmente, nos primeiros dias de viagem era possível
conservar mandioca, batata inglesa e batata doce, mas com o tempo a
alimentação ficava seca. Era carne e farinha. Havia sempre
rapadura. Os tonéis para água
eram abastecidos conforme encontravam rios e riachos. Raramente
bebiam o precioso líquido isoladamente, pois o tererê e o chimarrão
dispensavam o hábito.
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Serra de Maracaju/MS - http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1041303 |
Um
de seus
relatos mais
interessantes e emocionantes foi sobre um confronto ocorrido entre
eles e uma tribo de índios ferozes, ocorrida nas proximidades da
Serra de Maracaju, município
de nome homônimo. Antes de entrar em detalhes sobre o
episódio,
lembro-me que ele explicou que na sua época não haviam
os pousos
como hoje.
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Imagem meramente ilustrativa, mostrando uma comitiva atravessando um rio. |
Eram raríssimos. Isso os obrigava a enfrentar longos
percursos em áreas completamente selvagens, onde raramente
encontravam um homem branco. O pernoite se dava sob a sentinela de um
peão, sempre atento ao possível ataque
de onças,
cobras e até mesmo índios.
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Imagem meramente ilustrativa de aldeias indígenas encontradas pelo caminho das comitivas. |
Algumas vezes eles alternavam-se um ou
dois na própria madrugada. Aquele que dormisse hoje, era sentinela
amanhã. E assim a viagem se seguia.
Segundo
o Sr. Ambrósio, o sol já despontava seus primeiros raios no
fatídico dia. A peonada
havia acabado de tomar café e se preparava para encetar marcha
quando surgiu
uma massa
de índios
armados com arcos, arremessando flechas para todos os lados. Explicou
que a investida foi tão inesperada que não houve tempo nem de
pensar. Cada peão sobraçou sua arma e desferiu tiros para todos os
lados, num desespero sem conta. Ou matavam ou morriam. Alguns
tropeiros usaram as árvores como escudo, alvejando quantos podiam.
No meio do conflito ele viu
um de seus amigos com uma flecha fincada ao olho. A manhã dantes
silenciosa se transformou num campo de guerra. O
barulho de
tiros e gritos
assustadores ecoou
na mata,
tornando o cenário
aterrorizante.
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Em alguns lugares do Brasil, muitos homens se reuniam exclusivamente para matar índios que não admitiam a aproximação de homens brancos em suas terras. Os confrontos eram corriqueiros. |
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Registro real de homens brancos mortos por índios durante um ataque nas matas do interior de São Paulo em 1915 |
E
começou o morticínio.
A
comitiva havia montado pouso às margens de um pequeno riacho, que
nessa altura já não era mais de águas cristalinas, mas um rio de
sangue repleto de corpos de índios. Ele diz que nunca viu cena mais
mórbida. O massacre não
foi maior porque, assim que começaram os estampidos, muitos índios
se assustaram e correram, escondendo-se na mata. Assim que o silêncio
assomou, deram mais alguns tiros para cima, vislumbrando
amedrontá-los, evitando nova investida. Vários tropeiros estavam
cobertos de sangue.
Dentre
muitos índios mortos, alguns agonizavam
entre os
arbustos.
Eles gemiam e pediam ajuda em seus idiomas. A maioria implorava por
água. O Sr. Ambrósio relatou que alguns tropeiros
ainda
propuseram sacrificá-los,
mas acharam melhor economizar balas. Ninguém sabia o que poderia vir
adiante, pois supostamente seus iguais haveriam de voltar para
resgatar os feridos.
No
desespero das
discussões resolveram deixar o local
em poucos
minutos, cuidando dos ferimentos pelo caminho. Por sorte, ninguém
teve nada tão grave quanto ao que foi alvejado no olho, sendo
deixado numa estância próxima a Maracajú, por nome “Fazenda
Pântano”. E
assim deslizaram
sorrateiramente pelas veredas, tocando a comitiva.
Dentre
todas as histórias que ouvi do Sr. Ambrósio, essa foi a mais
impactante, inclusive me impressionou por um bom tempo. Eu perguntei
se ele não se arrependera. Ele disse que não se vangloriava do
episódio – até porque seus antepassados eram índios –
e
quem
estivesse em seu lugar faria o mesmo. Não havia outra opção. Mas
fazia questão de dizer que foi
um
acontecimento que ele não desejava a ninguém experimentar algo
parecido.
Outro
detalhe relatado foi sobre o comportamento cultural dos índios na
sua época. Ele disse que haviam muitos índios puramente selvagens,
os quais, diferentes de outros que se relacionavam com homens
brancos, não admitiam o mínimo contato e investiam ao menor
contato. Segundo ele, alguns tipos de índios eram tão desenvoltos
que se locomoviam nas matas sobre cavalos selvagens que se perderam
nas matas, após conflitos com espanhóis, havidos no Paraguai e
Bolívia. Ele disse ter ouvido muitos peões mais velhos contarem
verdadeiras façanhas vividas naquelas florestas. Havia casos de
índios que vinham furtar ferramentas, cachaça e o que encontravam.
Também ouviu casos de tropeiro que pegou à força moças índias,
cujos parentes vieram em seu encalço, matando-o.
O
Sr. Ambrósio Lemes Galvão, enquanto tropeiro, vivenciou experiências singulares, num tempo em que o "Mato Grosso" fazia jus ao nome, pois era uma selva intransponível. Não há dúvida que nenhum homem na sua idade, na ocasião em que o entrevistei, tinha o mesmo descortino ao desenrolar um novelo de recordações singulares, dignas de estar em livro. A hostilidade das matas, a truculência das comitivas não o embruteceu. Ambrósio Lemes Galvão era um homem sereno e hospitaleiro. Ele vivenciou o surgimento de Bataguassu como poucos, tendo convivido com todos os pioneiros que chegaram depois,
inclusive Jan Antonin Bata e tantos outros. Instalou-se por muitos
anos na Matinha, um dos três mais importantes pousos de boiada do
"Mato Grosso". Sua história e suas memórias são dignas
do respeito de todos nós e deve ser assunto atual nas escolas e nos
ambientes que tratam da memória do nosso município.
OBS.
Foram muitos os relatos do Sr. Ambrósio Lemes Galvão, inclusive
este não está completo, pois meus acervos estão muito fragmentados
e pretendo recuperá-los, evitando perder informações preciosas. Em
outro momento complementarei.
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