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quarta-feira, 8 de junho de 2016

AMBRÓSIO LEMES GALVÃO: A SAGA DE UM TROPEIRO


Ambrósio Lemes Galvão e seu cavalo no Pouso Matinha - Bataguassu/MT
A história que será contada adiante ocorreu em 1915, e me foi narrada pelo Sr. Ambrósio Lemes Galvão no ano de 1982, quando ele tinha 105 anos, e eu, 15. Como sabemos, ele foi tropeiro (condutor de boiada) por muitos anos e percorreu o Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e vários municípios do Paraguai com suas comitivas, desde adolescente. 
Como já escrevi anteriormente, eu costumava documentar a história de antigos moradores para amenizar a perda total de algumas memórias – e a do próprio município, obviamente. E o fazia sempre com lápis, papel e um gravador nas mãos. 
Por sua longevidade e por seu pioneirismo, o Sr. Senhor Ambrósio significava um patrimônio humano incalculável, fonte inesgotável de conhecimentos, embora muitos o vissem apenas como “um velhinho centenário”. Por estar vivo naquela época, havia a necessidade de se registrar algo. Naquela ocasião eu não tinha a maturidade e o conhecimento de História Oral, embora a vivesse na prática, pois o que eu fazia era registro de história oral. A falha foi não ter a maturidade de pesquisador. Assim, deixei de abordá-lo com a devida cientificidade.
A fotografia deixa evidente a descrição física do meu entrevistado. Observe seu nariz longilíneo, afiilado e o recorte de pálpebra que nos reporta aos primeiros moradores do Brasil.
Ambrósio Lemes Galvão era um senhor muito alto e esguio. Tinha um recorte de pálpebra do tipo mongol, rosto comprido e nariz afilado. Seu biótipo e fisionomia nos reportavam às duas nações primeiras, que vieram de longe fundar o nosso Brasil, e aqui se juntaram aos índios. Seus olhos, apertados, denunciavam fortemente o sangue dos verdadeiros donos de Pindorama. Eu era criança, tinha uns 7 anos quando o conheci.  
Quando ele deixou a Matinha, veio morar num pequeno sítio que ficava no final da rua Cuiabá, onde montou um pequeno engenho de cana de açúcar, e fabricava rapaduras para venda. Naquele tempo as casas tinham despensa. Lembro-me que meu irmão José Carlos Carlos (Cebolinha) me levava quando ia comprar rapadura. Nós íamos num velho Studio Back do meu pai. Era um caminhão verde escuro, movido à manivela. Meu pai mandava buscar fardos de rapaduras. Algumas vezes eu ia a pé com Maria de Fátima, minha irmã. As rapaduras eram grandes, amarelas, deliciosas. A despensa vivia cheia. Era o doce da época, pois não havia as variedades de hoje, aliás, era um complemento alimentar, pois é muito saudável. 
Era exatamente assim as rapaduras do Sr. Ambrósio. Não eram escuras... eram amarelas. (imagem meramente ilustrativa).
O meu contato autônomo com esse senhor deu-se muito tempo depois, quando eu o visitava para entrevistá-lo. Ele usava predominantemente camisa de manga comprida, sempre de cor única,  calças de tergal e chapéu de feltro. Apreciava botina, mas seus últimos anos foram à base do chinelo de dedos. Foi amante de um bom fumo de corda e café, inclusive conversava comigo degustando a bebida e jogando cusparadas a quilômetros.
Sua casa, de madeira pintada de azul, coberta com telhas francesas, ficava à rua Ribas do Rio Pardo, próxima ao prédio da Escola Marechal Rondon. Ali eu o visitava eventualmente, sempre com um caderno de anotação, um lápis ou o dito gravador portátil. E como ele ficava esparramado numa cadeira quase o dia inteiro, creio que se sentia bem com as visitas. 
"Coração de Jesus", bela folhagem que enfeitava o jardim da dona "Filó".

O jardim da dona “Filó”, sua esposa, era farto de crotons (haviam dois tipos: um conhecido como brasileirinho, o outro mudava apenas a soma do vermelho), begônias, coração de Jesus, lírio, espada de São Jorge, bromélia, copo de leite e muita samambaia pendurada. O colorido das flores e rosas se encarregava de enfeitar a varanda de piso queimado comxadrez vermelhão”, onde se distribuíam algumas cadeiras. Ali ficávamos a conversar.
Aos poucos o simpático velhinho desenrolava o novelo da sua vida. Vida de tropeiro, de viajante das incontáveis veredas dos sertões "matogrossenses", antes de conhecer a região que seria Bataguassu. Falava sobre Bata, sobre sua mãe, dona Maria Leme, Sr. Isac Lopes Cardoso, sobre o Sapê, episódios das origens do município, a Matinha, o rio Pardo etc etc etc. Contou-me que o fundador de Bataguassu costumava trazer sapatos para ele e sandálias e cortes de fazendas para sua mãe, além de vários souvenirs vindos de São Paulo e até de outros países.
Em sentido horário: Jan Antonin Bata, Sr. desconhecido, Maria Lemes Galvão, Sr. Kubik, Ambrósio Lemes Galvão e Sr. Desconhecido (se você souber os nomes dos desconhecidos, faça comentário abaixo e colabore).
Eram muitas histórias, e todas cativantes aos ouvidos de quem as valorizava muito. De vez em quando ele perguntava se era trabalho da escola. Eu dizia que era, mas nunca foi. Dizendo isso dispensava detalhes desnecessários e o deixava sempre à vontade, falando o que viesse a cabeça. Vez ou outra eu anotava algum detalhe interessante de sua conversa e deixava para perguntar quando ele dava nova pausa. Assim não cortava o seu raciocínio.  
Alguns pousos possuíam uma espécie de Venda, embora raros, na qual os tropeiros compravam alimentos e acessórios.
Algumas histórias sobre fatos ocorridos em Bataguassu com outras famílias eu jamais poderei contá-las, pois traria muito desconforto a algumas pessoas, como por exemplo, filhos e netos.  A lei diz que nesse caso, as memórias só podem ser publicadas após cinquenta anos do falecimento do narrador. Ele sempre me contava episódios vividos por ele, mas não conseguia datá-los, portanto eu deduzia a época de acordo com a idade que ele supunha ter quando o fato aconteceu. Como ele nasceu na década de 1880, essa história se passou mais ou menos em 1915, ou seja há 101 anos, ocasião em que ele se encontrava com 25 anos. 
Serra de Maracaju/MS - http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1041303 - O aspecto atual evidencia como as florestas matogrossenses eram hostis à época em que o Sr. Ambrósio Lemes Galvão, dentre tantos homens, transitavam esta e outras regiões em suas comitivas de gado.
De acordo com suas palavras, “o Mato Grosso era uma invernada só”, ou seja, uma floresta quase intransponível e muito perigosa. Ele repetia sempre que “hoje (1981) tudo estava uma maravilha. Os tropeiros podem até roncar no caminho”. Os perigos aos quais os peões estavam sujeitos eram dos mais improváveis, aliás, não apenas aos homens, mas ao gado também. 
Aspecto de uma travessia de gado num grande e caudaloso rio - Foto meramente ilustrativa
De acordo com o meu informante, nunca uma comitiva de gado chegava inteira, pois o percurso imputava as mais imprevisíveis avarias ao gado. Uns eram comidos por onças, outros quebravam a perna e tinham que ser imediatamente “carneados” e salgados, virando carne seca; alguns adoeciam… tudo acontecia no transcurso. Mas a quantidade de gado era tão grande que os fazendeiros que a recebia, nem fazia conta quando o chefe dapeonada” (como dizia ele) se sentava para explicar a subtração
Imagem meramente ilustrativa, mostrando o contato de tropeiros com índios domesticados.
Um detalhe curioso – e que eu nem sabia – era o fato de eles também conduzirem gado de mais de um dono numa única comitiva, além de cavalos e jumentos. A separação dava-se ao longo do destino de cada lote, conforme iam chegando. E o resto retomava às estradas boiadeiras para o próximo destino.
Aspecto de uma comitiva passando por um povoado - Imagem meramente ilustrativa.
Assim que a “peonada” resolvia parar, finados os penúltimos raios de sol, se instalavam como podiam, fazendo sempre duas ou três fogueiras em pontos estratégicos. 
Imagem atual e meramente ilustrativa de tropeiros em viagem
O gado já havia sido reunido. O pernoite se dava sobre uma peça de couro, ao modo de esteira. Sobre ela colocavam pelegos e se cobriam com palas de lã, compradas na Bolívia. Uma espécie de poncho. Ele explicou que haviam peças de algodão cru e lã, semelhantes a cobertores que eram obtidas no Paraguai, e todo peão tinha uma. Assim espantavam o frio. Nas temporadas de chuva usavam um tecido grosso, semelhante ao que chamamos “encerado”, ou lona, para se abrigar e cobrir as malas de víveres e munição. Toda a tralha era transportada nos lombos de cavalos e jumentos. 
Aspecto  de uma cozinha improvisada - Nota-se que os tropeiros toam chimarrão - A foto, de 1915, é meramente ilustrativa.
Aquietados, cuidavam de assar carne seca, consumida com feijão, toicinho e farinha. A comida de panela era preparada sobre trempes, numa peça móvel de ferro. Normalmente, nos primeiros dias de viagem era possível conservar mandioca, batata inglesa e batata doce, mas com o tempo a alimentação ficava seca. Era carne e farinha. Havia sempre rapadura. Os tonéis para água eram abastecidos conforme encontravam rios e riachos. Raramente bebiam o precioso líquido isoladamente, pois o tererê e o chimarrão dispensavam o hábito.
Serra de Maracaju/MS - http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1041303
Um de seus relatos mais interessantes e emocionantes foi sobre um confronto ocorrido entre eles e uma tribo de índios ferozes, ocorrida nas proximidades da Serra de Maracaju, município de nome homônimo. Antes de entrar em detalhes sobre o episódio, lembro-me que ele explicou que na sua época não haviam os pousos como hoje. 
Imagem meramente ilustrativa, mostrando uma comitiva atravessando um rio.
Eram raríssimos. Isso os obrigava a enfrentar longos percursos em áreas completamente selvagens, onde raramente encontravam um homem branco. O pernoite se dava sob a sentinela de um peão, sempre atento ao possível ataque de onças, cobras e até mesmo índios.
Imagem meramente ilustrativa de aldeias indígenas encontradas pelo caminho das comitivas.
 Algumas vezes eles alternavam-se um ou dois na própria madrugada. Aquele que dormisse hoje, era sentinela amanhã. E assim a viagem se seguia.
Segundo o Sr. Ambrósio, o sol já despontava seus primeiros raios no fatídico dia. A peonada havia acabado de tomar café e se preparava para encetar marcha quando surgiu uma massa de índios armados com arcos, arremessando flechas para todos os lados. Explicou que a investida foi tão inesperada que não houve tempo nem de pensar. Cada peão sobraçou sua arma e desferiu tiros para todos os lados, num desespero sem conta. Ou matavam ou morriam. Alguns tropeiros usaram as árvores como escudo, alvejando quantos podiam. No meio do conflito ele viu um de seus amigos com uma flecha fincada ao olho. A manhã dantes silenciosa se transformou num campo de guerra. O barulho de tiros e gritos assustadores ecoou na mata, tornando o cenário aterrorizante.
Em alguns lugares do Brasil, muitos homens se reuniam exclusivamente para matar índios que não admitiam a aproximação de homens brancos em suas terras. Os confrontos eram corriqueiros.
Registro real de homens brancos mortos por índios durante um ataque nas matas do interior de São Paulo em 1915
E começou o morticínio.
A comitiva havia montado pouso às margens de um pequeno riacho, que nessa altura já não era mais de águas cristalinas, mas um rio de sangue repleto de corpos de índios. Ele diz que nunca viu cena mais mórbida. O massacre não foi maior porque, assim que começaram os estampidos, muitos índios se assustaram e correram, escondendo-se na mata. Assim que o silêncio assomou, deram mais alguns tiros para cima, vislumbrando amedrontá-los, evitando nova investida. Vários tropeiros estavam cobertos de sangue.
Dentre muitos índios mortos, alguns agonizavam entre os arbustos. Eles gemiam e pediam ajuda em seus idiomas. A maioria implorava por água. O Sr. Ambrósio relatou que alguns tropeiros ainda propuseram sacrificá-los, mas acharam melhor economizar balas. Ninguém sabia o que poderia vir adiante, pois supostamente seus iguais haveriam de voltar para resgatar os feridos.
No desespero das discussões resolveram deixar o local em poucos minutos, cuidando dos ferimentos pelo caminho. Por sorte, ninguém teve nada tão grave quanto ao que foi alvejado no olho, sendo deixado numa estância próxima a Maracajú, por nome “Fazenda Pântano”. E assim deslizaram sorrateiramente pelas veredas, tocando a comitiva.
Dentre todas as histórias que ouvi do Sr. Ambrósio, essa foi a mais impactante, inclusive me impressionou por um bom tempo. Eu perguntei se ele não se arrependera. Ele disse que não se vangloriava do episódio – até porque seus antepassados eram índios – e quem estivesse em seu lugar faria o mesmo. Não havia outra opção. Mas fazia questão de dizer que foi um acontecimento que ele não desejava a ninguém experimentar algo parecido.
Outro detalhe relatado foi sobre o comportamento cultural dos índios na sua época. Ele disse que haviam muitos índios puramente selvagens, os quais, diferentes de outros que se relacionavam com homens brancos, não admitiam o mínimo contato e investiam ao menor contato. Segundo ele, alguns tipos de índios eram tão desenvoltos que se locomoviam nas matas sobre cavalos selvagens que se perderam nas matas, após conflitos com espanhóis, havidos no Paraguai e Bolívia. Ele disse ter ouvido muitos peões mais velhos contarem verdadeiras façanhas vividas naquelas florestas. Havia casos de índios que vinham furtar ferramentas, cachaça e o que encontravam. Também ouviu casos de tropeiro que pegou à força moças índias, cujos parentes vieram em seu encalço, matando-o.
O Sr. Ambrósio Lemes Galvão, enquanto tropeiro, vivenciou experiências singulares, num tempo em que o "Mato Grosso" fazia jus ao nome, pois era uma selva intransponível. Não há dúvida que nenhum homem na sua idade, na ocasião em que o entrevistei, tinha o mesmo descortino ao desenrolar um novelo de recordações singulares, dignas de estar em livro. A hostilidade das matas, a truculência das comitivas não o embruteceu. Ambrósio Lemes Galvão era um homem sereno e hospitaleiro. Ele vivenciou o surgimento de Bataguassu como poucos, tendo convivido com todos os pioneiros que chegaram depois, inclusive Jan Antonin Bata e tantos outros. Instalou-se por muitos anos na Matinha, um dos três mais importantes pousos de boiada do "Mato Grosso". Sua história e suas memórias são dignas do respeito de todos nós e deve ser assunto atual nas escolas e nos ambientes que tratam da memória do nosso município.

OBS. Foram muitos os relatos do Sr. Ambrósio Lemes Galvão, inclusive este não está completo, pois meus acervos estão muito fragmentados e pretendo recuperá-los, evitando perder informações preciosas. Em outro momento complementarei.