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segunda-feira, 5 de junho de 2017

Os bugres de Bataguassu

Esta fotografia é meramente ilustrativa, já que não existem imagens reais e de época dos bugres que me refiro abaixo, embora sejam também os 'ofaiés-xavantes'

Durante a minha infância,
Tive uma experiência rara e invejável por muitos:
Viver junto a índios autênticos nas cercanias de Bataguassu.
Mas, assim como se diz "eu era feliz e não sabia",
Posso dizer que tínhamos índios e não sabíamos.
Eles passavam despercebidos...
Pelo povo, 
Pelos professores, 
Pelas autoridades...
Eram remanescentes dos índios ofaiés-xavantes,
Chamados "bugres" por todos.
Havia sempre alguém dizendo:
"Lá vão os bugres!"
Era o mesmo que dizer:
"Lá vão os bichos!"
Havia uma carga negativa nesse tratamento,
Como se referissem a vadios.
Nunca achei correta a maneira como eram enxergados pela maioria.
Só muitos anos depois
Fui perceber o tamanho do preconceito.
De tão calejados pela rejeição sofrida pelos "brancos",
Eles se auto-isolavam
Numa nítida demonstração de quem se sente inferior.
Normalmente andavam em grupo,
Cabisbaixos, olhando as pessoas de esguelho,
Iguais a cachorros vítimas de pedradas.
Na realidade eram apedrejados por achincalhes, desprezo e olhares desdenhosos.
Aparentavam ter perdido a identidade que findou arrastando junto a dignidade.
Não ousavam olhar nos olhos dos "homens brancos",
Como faziam os escravos em sinal de submissão.
Não falavam a língua portuguesa, exceto palavras-chaves;
Eram monossilábicos, macarrônicos o bastante para comunicar-se com bêbados.
Lembro-me que era uma família pequena:
Uma anciã que pouco se deslocava do mato para o centro da cidade,
Um casal de idade entre quarenta a cinquenta anos
(Alguém ali era filho da bugra anciã),
Uma bela adolescente de uns dezessete anos,
Um rapazinho adolescente
E uma menina de aproximadamente dez anos.
A mãe dessas crianças costumava
Trajar vestido sobre calça comprida.
Nunca soube qual a língua ou dialeto que falavam com fluência.
Era uma linguagem estranha.
Adorava vê-los conversando,
Mas até esse direito ele usufruiam com reservas,
Pois se percebessem a presença de estranhos
Calavam-se ou diminuiam o tom.
Não sei se por vergonha ou medo.
Creio que o silêncio os deixavam invisíveis.
Obviamente percebiam que o dialeto chamava a atenção.
Quando estavam sozinhos, pareciam gralhas:
Falavam, riam, gesticulavam...
Aparentavam felizes.
"Convivi" com os nossos "bugres"
De 1967 (quando nasci)
A 1991 (quando deixei Bataguassu).
Foram vinte e quatro anos de "contato".
Quando cheguei ao Rio Grande do Norte
E não vi índios,
Exceto pessoas com traços indígenas,
Percebi o valor incalculável
Dos bugres de Bataguassu.
Tínhamos índios genuínos, puros e não sabíamos,
Ou não dávamos valor.
Hoje, passados vinte e cinco anos,
Reconheço o estrago.
Sinto um misto de compaixão e arrependimento por não ter feito nada por eles.
Com a morte da bugra anciã,
Enterrou-se um tesouro jamais redescoberto.
Foi-se um acervo de memórias indescritível.
Sempre pensei em fazer uma pesquisa de campo com eles,
Mas além da barreira do idioma,
Eram arredios por razões várias.
Eu sentia vontade de perguntar
Onde ela nasceu,
Sua tribo, sua aldeia,
Que língua falava...
Mas agora é tarde.
Os nossos governantes sempre trataram
Os povos indígenas de maneira deficiente.
Os livros didáticos diziam que eles pescavam, caçavam, faziam ocas...
Os verbos eram no passado, como se eles não existissem mais.
Eu não entendia por que eles não caçavam se estavam vivos e moravam ao nosso lado.
No dia do índio éramos enfeitados,
Fazíamos desenhos de ocas, tacapes,
Mas não havia aula de campo.
Os bugres passavam despercebidos;
Sequer eram vistos como índios.
Na minha terceira série primária
Falei sobre eles a uma professora.
Ela disse que eles não eram os índios dos livros.
Quem era eu-adolescente
Para desatar esse nó górdio?
Os antepassados desses "bugres"
Habitaram durante séculos
Nas margens dos rios Pardo e Paraná.
Exatamente onde se localiza
O Porto XV de Novembro.
Os "bugres" da Bataguassu da minha infância
Não faziam potes, panelas, flechas...
O que pode denotar não serem índios verdadeiros,
Mas como sê-los?
O "homem branco" chegou, fincou estacas, delimitou propriedades e disse:
- "Isso é meu!"
Outros e outros se juntaram em coro para cantar a cantilena dos "posseiros" e "grileiros".
Nada era deles!
Contou-me o senhor Ambrósio Lemes Galvão, em 1981,
Que os antigos diziam que
A ordem dos fazendeiros paulistas que se arrancharam no El Dorado matogrossense, era "meter bala na bugrada que varava as cercas para pegar barro de louça".
Eles tinham fama de ladrões de animais domésticos.
Não é necessário esforço para entender que os bugres eram personas non gratas.
Qual era a válvula de escape deles, se:
- Não falavam português,
- Não tinham emprego,
- Não podiam tirar sustento da mata que pertencia por excelência,
- Não tinham de onde tirar barro para as suas louças,
- Não podiam invadir "terras alheias" para cortar cipós para os seus cestos...
Não... não... não...
O que restou-lhes?
Vagar a esmo!
A escritora e indianista
Nísia Floresta Brasileira Augusta
Em sua obra "A lágrima de um Caeté" disse
Que eles perderam a identidade.
Nem eram selvagens, nem civilizados.
A pequena família de "bugres" de Bataguassu
Morava num casebre,
Nas matas próximas ao Sapê.
Eram terras de um descendente de romenos e alemães.
Homem fanático por cachaça,
Senhor de posses, fartava os infelizes "bugres" com álcool.
A Praça Jan Antonin Bata
Era o ponto de encontro deles,
Num banco que ficava na esquina,
Defronte à mercearia do senhor Aparício.
Ali eu disfarçava passear para ouvir
A língua estranha deles.
Era uma indescritível curiosidade.
Com exceção a bugra anciã,
Que partiu para o céu dos índios,
Restaram os mais jovens.
Suponho que o casal mais velho
Conserve o idioma mater
E possa colaborar com informações.
Dia desses contaram-me que eles
Tornaram-se evangélicos.
Pelo que sei, índios não entendem
Das coisas abstratas
Na mesma profusão que entendemos.
O que eles sabem sobre céu e inferno?!
Não sei o que é correto:
Se salvar almas,
Ou salvar sua cultura.
Não reconheço qualquer religião
Como solução para a situação deles.
Acaso seja verdadeira essa adesão ao cristianismo,
É mais um alento.
Talvez uma maneira de se sentirem pertencidos à classe dos "homens brancos".
É muito difícil acertar as contas com o passado.
Foram décadas sem dignidade.
Faltou-lhes casa própria, alimento
E respeito à sua cultura.
Os bugres de Bataguassu eram invisíveis.
E nós, bataguassuenses, erramos por não termos feito diferente. JANEIRO/1987


PS. Durante a composição dessse texto, escolhi usar a palavra "bugre" propositalmente. Essa foi a maneira como fui educado, embora não a uso com sentido pejorativo. Nunca a usei para desmerecê-los. Para mim, "bugres" são aqueles que, durante a minha infância, vi-os sofridos, aos trapos como desgente. Uso e prefiro essa forma porque me recuso a esquecer que ao invés de os termos amado e respeitado, os marginalizamos.

Porto XV de Novembro


Sofri assistindo aos ribeirinhos deixando o Porto XV de Novembro.
O teatro de operações mais parecia despejo.
Como levar saudades?
Como levar lembranças?
Nos caminhões só cabiam meia dúzia de trastes e quinquilharias.
As histórias eram grandes demais para caber nas mudanças.
Aquele monte de gente saudosa era igual a floresta em estado de desmatamento.
Muito difícil cortar os troncos de si e deixar as raízes para trás.
Eram exatamente como retirantes forçados, mutilados...
Quem devolveria os quintais cheios de histórias?
Quem devolveria as estradas velhas sulcadas pelos pescadores?
Não era possível levar as paredes carcomidas pelo tempo, impregnadas de tisna e fuligem.
Não havia como colocar debaixo dos braços as pedras cheias de musgo que jazem ali desde que o mundo surgiu.
Nem as tralhas enferrujadas que se espalham pelos quintais, acumuladas para nada.
Agora eram como pedaços daquelas pessoas...
Cúmplices de tudo.
Como deixar os ninhos das araras?
Como levar as ingazeiras que sobraçavam o rio, onde os pássaros orquestravam as mais belas alvoradas?
Como levar o chão vermelho, cheio de marcas de sucessivas gerações?
Como arrancar o tronco do jatobazeiro, onde o velhinho pitava cachimbo, enfumaçando as crianças nas noites escuras, com causos de medo, de malassombros, de heróis, reis, princesas e malasartes?
Nunca mais verão o ninho sagrado onde os umbigos estão enterrados.
Senhor Presidente da República, por que não investiste em educação e criaste outra forma de geração de energia elétrica?
Como chamar de progresso a mutilação da fauna e da flora?
Como chamar de evolução a temperatura que será alterada e torturará os descendentes como verdadeira estufa?
Por favor, não diga que esses ribeirinhos estão indo para o "Novo Porto XV de Novembro".
Saiba que o porto XV de Novembro só existe ali e não é possível ser transportado para outro lugar.
Diga aos ribeirinhos que eles irão para uma gaiola...
Que não terão mais a sombra das matas nativas, o vento fresco e perfumado pelas florestas, o peixe pescado no fundo do quintal...
O por-do-sol inesquecível na barranca do rio Paraná, ao som dos guinchos dos macacos pulando nas figueiras.

Se Vossa Excelência quiser saber o que sentem os ribeirinhos, pergunte aos passarinhos o que eles sentem nas gaiolas. NOVEMBRO/1999

O dia que o Pantanal foi falar com Deus

Cansado de sofrer e preocupado com o que vem acontecendo consigo, o Pantanal foi reclamar a Deus.
Os peixes queriam de volta o tapete de musgo que ficava no leito do rio. Os ovos deixados ali eram pisoteados por turistas, carros esportivos e não eclodiam mais, diminuindo diariamente a fauna aquática.

Sapos, rãs e pererecas estavam revoltados. Antes possuíam a maior orquestra da mata rasteira. Só perdiam para os passarinhos. As lanchas motorizadas e motos aquáticas varreram às margens dos rios, onde ficavam os berços dos girinos.
As onças e jaguatiricas alegaram que as rodovias obstruíram as trilhas que usavam para chegar às suas tocas. A onça velha era a mais chateada.
A raposa disse que estava faminta, pois suas presas eram atropeladas diariamente no asfalto.

As sucuris também alegaram estar famintas, pois com a especulação imobiliária, sumiram os seus alimentos prediletos.
As garças e seriemas disseram que as queimadas escasseavam as larvas e minhocas.
Os tuiuiús não conseguiam se equilibrar nas próprias pernas. Desfrutavam de jejum forçado devido ao sumiço dos peixes.
Capivaras, antas e pacas agiam com desconserto; pareciam enlouquecidas. O desmatamento acabou com os túneis centenários por onde transitavam com segurança.
Os passarinhos apresentaram uma lista de problemas que ia desde caçadores ao corte de palmeiras e árvores frutíferas, fonte de alimentação de todos. Os goivirais já haviam desaparecido da área.
Os macacos fizeram deles as palavas dos passarinhos, com o agravante de reclamar o sumiço dos cipós e árvores que lhes serviam de caminho para transitar nas matas. Agora estavam desprotegidos e seus filhotes diminuíram.

As abelhas também reclamaram que sua prole estava reduzida, que a produção de mel amargava a lotes insignificantes. Estavam tristes, pois muitos dependiam do que elas produziam; muitas empreenderam fuga do Pantanal.
O porco do mato compareceu carregado por outras espécies, pois estava magro demais para o esforço. Como era o mais idoso e sábio, faria colocações muito fundamentadas.
Os jacarés compareceram timidamente. Estavam acostumados a dominar grandes áreas. Agora, mais pareciam lagartixas grandes.
As lontras e ariranhas não foram. Como a sua espécie estava muito reduzida, mandaram um respeitoso bilhete, inclusive pediram desculpas. Preferiram montar guarda para seus filhotes e garantir a sobrevivência da espécie.
O tamanduá falou da escassez de formigas e outros insetos mortos pelo veneno trazido pelo vento. Os aviões espargiam inseticida nas lavouras e atingiam rios, matas e animais. Os peixes aplaudiam a reclamação, pois milhares deles morriam em tais empreendimentos.
O rio Paraguai compareceu representando os demais rios, riachos, córregos e nascentes. Fez abordagens sérias, inclusive que além de receberam esgotos, percebiam líquidos estranhos desaguando em suas áreas. Explicou que estava assoreado e não conseguia cumprir o seu papel natural como antes.
Os ipês-roxos foram escolhidos para representar quase toda a flora da região. Não havia como dizer "toda" porque algumas estavam extintas. Disseram que não conseguiam cumprir com regularidade o papel de refrescar a terra e ajudar na formação de chuvas regulares. As cidades, os pastos e as indústrias causavam assoreamento de igarapés, cavavam esgotos e provocavam danos de todos os tipos. Os ipês-roxos disseram que sentiam-se deprimidos por assistir ao sumiços de insetos, parasitas, trepadeiras, macacos, pássaros e tantas vidas que alegravam as matas. Disseram ser insuportável se restringir a pequenas reservas, sem comunicação com outros habitats, e ver o desaparecimento de mamíferos que não conseguiam sobreviver em espaços tão pequenos.
A terra, o barro e as areias contaram que se sentiam humilhados e, de certo modo, inúteis, sem húmus, viam-se condenados por assorearem os rios, causando mudanças geográficas, inclusive muitas erosões. Fizeram questão de explicar que não eram vilãs, mas vítimas do desmatamento, pois tinham como função natural segurar as terras com suas raízes, dentre outros papéis importantes.
A reunião duraria dois dias, mas como a pauta aumentava a cada discussão, demorou-se uma semana. Toda a fauna e flora sobrevivente compareceu, falou, reclamou e sugeriu. Diferente das reuniões dos homens, esse encontro foi muito respeitoso e organizado, fazendo jus ao quanto a natureza é perfeita.
Deus ouviu atentamente cada espécie.
Encerradas as reivindicações, Ele disse o seguinte, aliás, vou reproduzir literalmente sua fala, pois é é uma sentença muito bonita:
- "Querida Fauna, querida Flora, queridos minerais. Eu criei todo o Cosmo, os planetas e tudo mais que há neles, de maneira que existisse harmonia e equilíbrio entre todos os seres vivos e inanimados como as rochas, as areias,as águas e tudo mais.
Quando fiz o Pantanal, quis reproduzir uma pequenina parte do Jardim do Éden, pois imaginei que todos os homens e mulheres queriam saber como é o Paraíso Celeste, acaso escolhesse o amor como atitude diária.
O Pantanal é o milésimo de um grão de areia comparado ao Paraíso. Eu apenas quis dar a todos os biomas uma característica especial em todo o Planeta.
Infelizmente o homem foi o único ser, dentre milhares, que feriu outras espécies a ponto de até mesmo extinguir muitas.
Tudo o que ofertei ao homem foi gratuito. Só pedi que ele cuidasse, pois somente assim viveria em paz. Escolhi dar-lhe uma inteligência superior a todos os demais animais, justamente para que ele vivesse em paz e em harmonia com a mãe natureza.
Sei que existem alguns homens e mulheres protegendo o Pantanal e outros biomas no mundo inteiro. São pessoas realmente inteligentes e civilizadas. Mas são poucas!
Eu só tenho uma coisa para dizer-lhes:
Não posso fazer nada!
Sei que vos assusto com essas palavras, pois sei que não é o que esperavam ouvir de Mim.
Criei um Planeta perfeito para que o homem fosse o grande protetor, não o seu maior algoz. E ele o é.
Todos os biomas criados por Mim são pequenos pedacinhos do Paraíso na Terra: Pantanal, Serrado, Mata Atlântica, Amazônia, Pampa e Caatinga. Esses são apenas os do Brasil. Há inúmeros por todo o Planeta.
Eu não posso interferir na Terra ao gosto dos homens. Dei-lhes o livre arbítrio. Ofereci-lhes as Escrituras Sagradas como parte da harmonia que deveria construir, mas ele também não compreendeu o bastante.
Observem que tudo o que existe no Pantanal se fez presente ou mandou representantes, menos o homem. Ele parece não ter o mesmo interesse de vocês. Poucos têm buscado inspiração em mim para buscar a paz e a harmonia mundial.
Eu não posso interferir na inteligência dos homem, pois, depois da inteligência Divina, a maior inteligência na Terra é a do homem. Ele sabe que está errado, mas parece escolher sempre o caminho mais largo e fácil.
Mas há uma luz no fim do túnel e só o homem pode resolver. Na realidade eu tenho poder para transformar tudo no que era antes, assim como posso reduzir a pó num milésimo de segundo tudo o que há sobre a Terra. A luz que me refiro é a minha infinita bondade, já que, na Terra, só o homem tem o poder de decidir o caminho que quer seguir. Talvez vocês pensem que estou colocando o homem em situação superior a mim, mas não. Estamos em posições patamares completamente diferentes, assim como a morte é diferente da vida. O que quero e aguardo é que os homens se conscientizem e reconheçam que eles mesmos estão se auto-eliminando da natureza.
Vocês fizeram a parte de vocês. Cabe a eles fazerem a parte deles. O dia que isso acontecer, não apenas o Pantanal, mas todos os biomas e, consequentemente, todo o Planeta voltará a ser Paraíso. JULHO/1996