Esta fotografia é meramente ilustrativa, já que não existem imagens reais e de época dos bugres que me refiro abaixo, embora sejam também os 'ofaiés-xavantes' |
Durante a minha infância,
Tive uma experiência rara e invejável por muitos:
Viver junto a índios autênticos nas cercanias de Bataguassu.
Mas, assim como se diz "eu era feliz e não sabia",
Posso dizer que tínhamos índios e não sabíamos.
Eles passavam despercebidos...
Pelo povo,
Pelos professores,
Pelas autoridades...
Eram remanescentes dos índios ofaiés-xavantes,
Chamados "bugres" por todos.
Havia sempre alguém dizendo:
"Lá vão os bugres!"
Era o mesmo que dizer:
"Lá vão os bichos!"
Havia uma carga negativa nesse tratamento,
Como se referissem a vadios.
Nunca achei correta a maneira como eram enxergados pela maioria.
Só muitos anos depois
Fui perceber o tamanho do preconceito.
De tão calejados pela rejeição sofrida pelos "brancos",
Eles se auto-isolavam
Numa nítida demonstração de quem se sente inferior.
Normalmente andavam em grupo,
Cabisbaixos, olhando as pessoas de esguelho,
Iguais a cachorros vítimas de pedradas.
Na realidade eram apedrejados por achincalhes, desprezo e olhares desdenhosos.
Aparentavam ter perdido a identidade que findou arrastando junto a dignidade.
Não ousavam olhar nos olhos dos "homens brancos",
Como faziam os escravos em sinal de submissão.
Não falavam a língua portuguesa, exceto palavras-chaves;
Eram monossilábicos, macarrônicos o bastante para comunicar-se com bêbados.
Lembro-me que era uma família pequena:
Uma anciã que pouco se deslocava do mato para o centro da cidade,
Um casal de idade entre quarenta a cinquenta anos
(Alguém ali era filho da bugra anciã),
Uma bela adolescente de uns dezessete anos,
Um rapazinho adolescente
E uma menina de aproximadamente dez anos.
A mãe dessas crianças costumava
Trajar vestido sobre calça comprida.
Nunca soube qual a língua ou dialeto que falavam com fluência.
Era uma linguagem estranha.
Adorava vê-los conversando,
Mas até esse direito ele usufruiam com reservas,
Pois se percebessem a presença de estranhos
Calavam-se ou diminuiam o tom.
Não sei se por vergonha ou medo.
Creio que o silêncio os deixavam invisíveis.
Obviamente percebiam que o dialeto chamava a atenção.
Quando estavam sozinhos, pareciam gralhas:
Falavam, riam, gesticulavam...
Aparentavam felizes.
"Convivi" com os nossos "bugres"
De 1967 (quando nasci)
A 1991 (quando deixei Bataguassu).
Foram vinte e quatro anos de "contato".
Quando cheguei ao Rio Grande do Norte
E não vi índios,
Exceto pessoas com traços indígenas,
Percebi o valor incalculável
Dos bugres de Bataguassu.
Tínhamos índios genuínos, puros e não sabíamos,
Ou não dávamos valor.
Hoje, passados vinte e cinco anos,
Reconheço o estrago.
Sinto um misto de compaixão e arrependimento por não ter feito nada por eles.
Com a morte da bugra anciã,
Enterrou-se um tesouro jamais redescoberto.
Foi-se um acervo de memórias indescritível.
Sempre pensei em fazer uma pesquisa de campo com eles,
Mas além da barreira do idioma,
Eram arredios por razões várias.
Eu sentia vontade de perguntar
Onde ela nasceu,
Sua tribo, sua aldeia,
Que língua falava...
Mas agora é tarde.
Os nossos governantes sempre trataram
Os povos indígenas de maneira deficiente.
Os livros didáticos diziam que eles pescavam, caçavam, faziam ocas...
Os verbos eram no passado, como se eles não existissem mais.
Eu não entendia por que eles não caçavam se estavam vivos e moravam ao nosso lado.
No dia do índio éramos enfeitados,
Fazíamos desenhos de ocas, tacapes,
Mas não havia aula de campo.
Os bugres passavam despercebidos;
Sequer eram vistos como índios.
Na minha terceira série primária
Falei sobre eles a uma professora.
Ela disse que eles não eram os índios dos livros.
Quem era eu-adolescente
Para desatar esse nó górdio?
Os antepassados desses "bugres"
Habitaram durante séculos
Nas margens dos rios Pardo e Paraná.
Exatamente onde se localiza
O Porto XV de Novembro.
Os "bugres" da Bataguassu da minha infância
Não faziam potes, panelas, flechas...
O que pode denotar não serem índios verdadeiros,
Mas como sê-los?
O "homem branco" chegou, fincou estacas, delimitou propriedades e disse:
- "Isso é meu!"
Outros e outros se juntaram em coro para cantar a cantilena dos "posseiros" e "grileiros".
Nada era deles!
Contou-me o senhor Ambrósio Lemes Galvão, em 1981,
Que os antigos diziam que
A ordem dos fazendeiros paulistas que se arrancharam no El Dorado matogrossense, era "meter bala na bugrada que varava as cercas para pegar barro de louça".
Eles tinham fama de ladrões de animais domésticos.
Não é necessário esforço para entender que os bugres eram personas non gratas.
Qual era a válvula de escape deles, se:
- Não falavam português,
- Não tinham emprego,
- Não podiam tirar sustento da mata que pertencia por excelência,
- Não tinham de onde tirar barro para as suas louças,
- Não podiam invadir "terras alheias" para cortar cipós para os seus cestos...
Não... não... não...
O que restou-lhes?
Vagar a esmo!
A escritora e indianista
Nísia Floresta Brasileira Augusta
Em sua obra "A lágrima de um Caeté" disse
Que eles perderam a identidade.
Nem eram selvagens, nem civilizados.
A pequena família de "bugres" de Bataguassu
Morava num casebre,
Nas matas próximas ao Sapê.
Eram terras de um descendente de romenos e alemães.
Homem fanático por cachaça,
Senhor de posses, fartava os infelizes "bugres" com álcool.
A Praça Jan Antonin Bata
Era o ponto de encontro deles,
Num banco que ficava na esquina,
Defronte à mercearia do senhor Aparício.
Ali eu disfarçava passear para ouvir
A língua estranha deles.
Era uma indescritível curiosidade.
Com exceção a bugra anciã,
Que partiu para o céu dos índios,
Restaram os mais jovens.
Suponho que o casal mais velho
Conserve o idioma mater
E possa colaborar com informações.
Dia desses contaram-me que eles
Tornaram-se evangélicos.
Pelo que sei, índios não entendem
Das coisas abstratas
Na mesma profusão que entendemos.
O que eles sabem sobre céu e inferno?!
Não sei o que é correto:
Se salvar almas,
Ou salvar sua cultura.
Não reconheço qualquer religião
Como solução para a situação deles.
Acaso seja verdadeira essa adesão ao cristianismo,
É mais um alento.
Talvez uma maneira de se sentirem pertencidos à classe dos "homens brancos".
É muito difícil acertar as contas com o passado.
Foram décadas sem dignidade.
Faltou-lhes casa própria, alimento
E respeito à sua cultura.
Os bugres de Bataguassu eram invisíveis.
E nós, bataguassuenses, erramos por não termos feito diferente. JANEIRO/1987
PS. Durante a composição dessse texto, escolhi usar a palavra "bugre" propositalmente. Essa foi a maneira como fui educado, embora não a uso com sentido pejorativo. Nunca a usei para desmerecê-los. Para mim, "bugres" são aqueles que, durante a minha infância, vi-os sofridos, aos trapos como desgente. Uso e prefiro essa forma porque me recuso a esquecer que ao invés de os termos amado e respeitado, os marginalizamos.
Tive uma experiência rara e invejável por muitos:
Viver junto a índios autênticos nas cercanias de Bataguassu.
Mas, assim como se diz "eu era feliz e não sabia",
Posso dizer que tínhamos índios e não sabíamos.
Eles passavam despercebidos...
Pelo povo,
Pelos professores,
Pelas autoridades...
Eram remanescentes dos índios ofaiés-xavantes,
Chamados "bugres" por todos.
Havia sempre alguém dizendo:
"Lá vão os bugres!"
Era o mesmo que dizer:
"Lá vão os bichos!"
Havia uma carga negativa nesse tratamento,
Como se referissem a vadios.
Nunca achei correta a maneira como eram enxergados pela maioria.
Só muitos anos depois
Fui perceber o tamanho do preconceito.
De tão calejados pela rejeição sofrida pelos "brancos",
Eles se auto-isolavam
Numa nítida demonstração de quem se sente inferior.
Normalmente andavam em grupo,
Cabisbaixos, olhando as pessoas de esguelho,
Iguais a cachorros vítimas de pedradas.
Na realidade eram apedrejados por achincalhes, desprezo e olhares desdenhosos.
Aparentavam ter perdido a identidade que findou arrastando junto a dignidade.
Não ousavam olhar nos olhos dos "homens brancos",
Como faziam os escravos em sinal de submissão.
Não falavam a língua portuguesa, exceto palavras-chaves;
Eram monossilábicos, macarrônicos o bastante para comunicar-se com bêbados.
Lembro-me que era uma família pequena:
Uma anciã que pouco se deslocava do mato para o centro da cidade,
Um casal de idade entre quarenta a cinquenta anos
(Alguém ali era filho da bugra anciã),
Uma bela adolescente de uns dezessete anos,
Um rapazinho adolescente
E uma menina de aproximadamente dez anos.
A mãe dessas crianças costumava
Trajar vestido sobre calça comprida.
Nunca soube qual a língua ou dialeto que falavam com fluência.
Era uma linguagem estranha.
Adorava vê-los conversando,
Mas até esse direito ele usufruiam com reservas,
Pois se percebessem a presença de estranhos
Calavam-se ou diminuiam o tom.
Não sei se por vergonha ou medo.
Creio que o silêncio os deixavam invisíveis.
Obviamente percebiam que o dialeto chamava a atenção.
Quando estavam sozinhos, pareciam gralhas:
Falavam, riam, gesticulavam...
Aparentavam felizes.
"Convivi" com os nossos "bugres"
De 1967 (quando nasci)
A 1991 (quando deixei Bataguassu).
Foram vinte e quatro anos de "contato".
Quando cheguei ao Rio Grande do Norte
E não vi índios,
Exceto pessoas com traços indígenas,
Percebi o valor incalculável
Dos bugres de Bataguassu.
Tínhamos índios genuínos, puros e não sabíamos,
Ou não dávamos valor.
Hoje, passados vinte e cinco anos,
Reconheço o estrago.
Sinto um misto de compaixão e arrependimento por não ter feito nada por eles.
Com a morte da bugra anciã,
Enterrou-se um tesouro jamais redescoberto.
Foi-se um acervo de memórias indescritível.
Sempre pensei em fazer uma pesquisa de campo com eles,
Mas além da barreira do idioma,
Eram arredios por razões várias.
Eu sentia vontade de perguntar
Onde ela nasceu,
Sua tribo, sua aldeia,
Que língua falava...
Mas agora é tarde.
Os nossos governantes sempre trataram
Os povos indígenas de maneira deficiente.
Os livros didáticos diziam que eles pescavam, caçavam, faziam ocas...
Os verbos eram no passado, como se eles não existissem mais.
Eu não entendia por que eles não caçavam se estavam vivos e moravam ao nosso lado.
No dia do índio éramos enfeitados,
Fazíamos desenhos de ocas, tacapes,
Mas não havia aula de campo.
Os bugres passavam despercebidos;
Sequer eram vistos como índios.
Na minha terceira série primária
Falei sobre eles a uma professora.
Ela disse que eles não eram os índios dos livros.
Quem era eu-adolescente
Para desatar esse nó górdio?
Os antepassados desses "bugres"
Habitaram durante séculos
Nas margens dos rios Pardo e Paraná.
Exatamente onde se localiza
O Porto XV de Novembro.
Os "bugres" da Bataguassu da minha infância
Não faziam potes, panelas, flechas...
O que pode denotar não serem índios verdadeiros,
Mas como sê-los?
O "homem branco" chegou, fincou estacas, delimitou propriedades e disse:
- "Isso é meu!"
Outros e outros se juntaram em coro para cantar a cantilena dos "posseiros" e "grileiros".
Nada era deles!
Contou-me o senhor Ambrósio Lemes Galvão, em 1981,
Que os antigos diziam que
A ordem dos fazendeiros paulistas que se arrancharam no El Dorado matogrossense, era "meter bala na bugrada que varava as cercas para pegar barro de louça".
Eles tinham fama de ladrões de animais domésticos.
Não é necessário esforço para entender que os bugres eram personas non gratas.
Qual era a válvula de escape deles, se:
- Não falavam português,
- Não tinham emprego,
- Não podiam tirar sustento da mata que pertencia por excelência,
- Não tinham de onde tirar barro para as suas louças,
- Não podiam invadir "terras alheias" para cortar cipós para os seus cestos...
Não... não... não...
O que restou-lhes?
Vagar a esmo!
A escritora e indianista
Nísia Floresta Brasileira Augusta
Em sua obra "A lágrima de um Caeté" disse
Que eles perderam a identidade.
Nem eram selvagens, nem civilizados.
A pequena família de "bugres" de Bataguassu
Morava num casebre,
Nas matas próximas ao Sapê.
Eram terras de um descendente de romenos e alemães.
Homem fanático por cachaça,
Senhor de posses, fartava os infelizes "bugres" com álcool.
A Praça Jan Antonin Bata
Era o ponto de encontro deles,
Num banco que ficava na esquina,
Defronte à mercearia do senhor Aparício.
Ali eu disfarçava passear para ouvir
A língua estranha deles.
Era uma indescritível curiosidade.
Com exceção a bugra anciã,
Que partiu para o céu dos índios,
Restaram os mais jovens.
Suponho que o casal mais velho
Conserve o idioma mater
E possa colaborar com informações.
Dia desses contaram-me que eles
Tornaram-se evangélicos.
Pelo que sei, índios não entendem
Das coisas abstratas
Na mesma profusão que entendemos.
O que eles sabem sobre céu e inferno?!
Não sei o que é correto:
Se salvar almas,
Ou salvar sua cultura.
Não reconheço qualquer religião
Como solução para a situação deles.
Acaso seja verdadeira essa adesão ao cristianismo,
É mais um alento.
Talvez uma maneira de se sentirem pertencidos à classe dos "homens brancos".
É muito difícil acertar as contas com o passado.
Foram décadas sem dignidade.
Faltou-lhes casa própria, alimento
E respeito à sua cultura.
Os bugres de Bataguassu eram invisíveis.
E nós, bataguassuenses, erramos por não termos feito diferente. JANEIRO/1987
PS. Durante a composição dessse texto, escolhi usar a palavra "bugre" propositalmente. Essa foi a maneira como fui educado, embora não a uso com sentido pejorativo. Nunca a usei para desmerecê-los. Para mim, "bugres" são aqueles que, durante a minha infância, vi-os sofridos, aos trapos como desgente. Uso e prefiro essa forma porque me recuso a esquecer que ao invés de os termos amado e respeitado, os marginalizamos.