Essa pintura é meramente ilustrativa |
Amanhece. O cheiro de orvalho e o canto dos pássaros são intensos. José caminha numa vereda acanhada, envolta em mata abundante. Muitas árvores, de tão longevas, têm altura e diâmetro majestosos. Dez homens não conseguem abraçá-las. Cipós, parasitas e mata rasteira formam um emaranhado quase intransponível. Por vezes a vegetação é tão densa que empresta à estradinha aspecto de túnel. Há figueiras, peroba-rosa, pindaíva, pimenta-de-macaco, pau-pereira, mate, jacarandá, ipês, tarumãs, paineiras, cedro-d'água, jacaratiá, pequi, imbaúba, angelim, pau-ferro, murta, sapucaia, louro-amarelo, sarandi, angico-vermelho, quina, cambará, marolo e uma infinidade de exemplares nativos. Uma capela de macacos faz malabarismos, guinchando entre os cipoais. Quando em vez ele sente o perfume de lindas e variadas flores voejadas de abelhas. O cenário bucólico lhe permite imaginar-se no Jardim do Éden. E nesse eflúvio ele deixa as suas passadas na terra vermelha e macia. De tão agradável, é indescritível a sensação. Logo ouve o som de água corrente. Ao aproximar-se vê um índio jovem por detrás de um frondoso 'jatobazeiro'. A árvore é muito alta e o rapaz mira o seu arco para o alto, visando atingir a caça escondida na sua fronde. Era justamente um macaco. Mas José fracassou os planos do selvagem caçador ao pisar num galho seco de 'pau-terra'. O estalo afugentou o animal que disparou entre os cúmulos nimbos formados pelas copas de incontáveis árvores. Quem é você? perguntou o índio. O que fazes aqui? Envergonhado, José explica-lhe não ter sido sua intenção interromper a caça. Mas o índio mostra-se simpático, explicando que não seria difícil encontrar centenas deles pelas redondezas, pois são atraídos por toda sorte de frutas ali existentes. Mal disse aquilo uma revoada de araras azuis acampa na fronde de uma centenária 'gameleira', cujas raízes - imensas - retorcidas - invadem as águas como verdadeiras serpentes. José pergunta que córrego é aquele. O jovem explica que eles o denominam 'guaçu', que significa grande. O córrego tem vinte e cinco palmos de largura naquele ponto e profundidade que chega ao peito do índio. Suas águas são cristalinas e tomadas por peixes. Os cardumes ziguezagueiam n´água fingindo serem monstros para assustarem as 'piramboias' e os peixes maiores. José se apresenta ao selvícola. O jovenzinho diz que seu nome é 'Yporã', ou seja, 'água boa', pois nascera às margens daquele córrego piscoso quando ali existira uma aldeia e bela roça, mas sua tribo se enveredara pelas margens de um rio mais adiante, cujos 'homens brancos' o chamam 'Pardo'. É costume de seu povo manter aldeias temporárias para que a natureza se recomponha. Em pouco tempo os dois jovens conversam como se conhecessem há anos. José indaga o companheiro sobre o motivo de um córrego tão pequeno ter nome de coisa grande. Ele responde que o homem branco infelizmente não entende quase nada da sua cultura. Para os povos indígenas as coisas grandes nem sempre denotam o tamanho, mas a qualidade, o significado ou sua nobreza. Para 'Yporã' o córrego 'Gu'açu' valia muito mais que o ouro que os brancos tanto buscam, independente de ser pequeno, pois era uma fonte de vida. Explica que toda a natureza deve ser reverenciada, pois dá ao homem tudo o que ele precisa. José fica perplexo com aquelas explicações tão sábias, dadas justamente por um jovem índio. O nativo diz existir um 'Deus' chamado 'Tupã', o qual criou tudo aquilo e os presenteou. Mas alertou-lhes que cuidassem muito bem, pois somente respeitando a natureza teriam vida e alimento para a eternidade. 'Yporã' contou que a Terra era a mãe dos povos indígenas, pois de suas entranhas sai a água que alimenta tudo o que vive sobre ela, ou seja, as árvores, os frutos, os bichos e os homens, e que eles devem tirar o seu sustento dessa criação divina com harmonia. O bom filho respeita e cuida da sua mãe. Assim fazemos, pois queremos ter nossa mãe sempre ao nosso lado, finalizou 'Yporã', vendo cruzar o córrego, uma manada de 'cachaços' grunhindo e batendo as enormes presas. José continua maravilhado com aquelas explicações tão bonitas. Ele não entende como um índio – considerado selvagem – detinha tanta sabedoria, e ele, sendo um homem branco e civilizado, não aprendera aquilo sequer com seus pais. Após muita conversa decidem empreender uma viagem pelo córrego, vencendo os mais inusitados obstáculos. Num determinado trecho sentem-se num labirinto, cujos cipós 'timbós' e troncos de velhas árvores mortas se encarregaram de formar uma barreira natural, represando as águas. Os materiais orgânicos, acumulados ao longo do tempo, deram origem a uma cascada. Coisa que só a natureza e o tempo fazem. Ali os dois aventureiros se sentam, deixando os filetes grossos do precioso líquido cair sobre suas cabeças. Uma gigantesca sucuri hiberna num emaranhado de cipós e folhas, certamente ignorando-os. José teve medo, mas "Yporã" brinca, dizendo que o animal não lhes faria mal, pois digeria alguma presa e nessa condição age como lesma. Logo os amigos estão a muitos passos dali. Um poço cheio de peixes pouco maiores que um palmo surgiu como feitiço. José maravilha-se com o que vê. Pula junto ao cardume, o qual começa a dar-lhe mordiscadas ligeiras causando-lhe cócegas. 'Yporã' conta-lhes que os índios gostam de pescar ali. Logo à tardinha eles colocam 'covos' ou 'paris' em pontos estratégicos da água. Dentro deixam um pedacinho de carne de alguma caça. Ao amanhecer as armadilhas estão cheias. Sua tribo aprecia peixe 'moqueado'. Conta também que eles variam o modo de pescar. Se estão no 'rio Pardo' usam canoa, flecha ou uma vara de ponta fina, pois os peixes são grandes. Explica-lhe que alguns índios pescam com cipó 'timbó'. Eles cortam o galho grosso, retorcem para sair o sumo e batem na água. A substância faz com que os cardumes fiquem anestesiados e emerjam, pois é uma espécie de veneno. Desse jeito os índios pegam os peixes grandes com as próprias mãos. Os menores são levados pelas águas e recobram os sentidos aos poucos. Nós só matamos aquilo que consumimos - ressalvou o nativo. Mais adiante José vai constatando que as margens do córrego têm uma compleição diferente. O barro é mais pastoso e acinzentado. Umas dúzias de capivaras descansam calmamente sobre a lama, não se importando com os dois seres que parecem parte delas. 'Yporã' mostra-lhe fragmentos de cerâmica ali deixadas por seus antepassados. Com aquele barro sua avó 'Kauane' molda vasilhas diversas para armazenar água, produzir 'cauim' e outras iguarias. As peças, depois de secas à sombra, são colocadas sobre pedras, cobertas com folhas, gravetos e troncos secos. Passam um dia inteiro queimando. José admirou um pedaço grande de cerâmica, semelhante a uma bandeja. 'Yporã' explica-lhe que naquelas peças são preparados 'beijus' e 'tapiocas. As placas de cerâmica são colocadas sobre trempes com fogo. Depois de aquecidas eles espalhavam a goma ou massa de mandioca, que, aquecidas, se aglutinam, formando uma espécie de bolachão. Tais iguarias são consumidas com peixe e caça. Alguns molham em cauim, outros em pimenta. A conversa é encerrada pela movimentação de lontras chafurdando na água. A mãe, temerosa de se tornar presa de algum animal, atrai a filharada para túneis lamacentos, sob o tronco de uma ingazeira debruçada no córrego. No topo, um bando de papagaios degusta os 'ingás'. Os fragmentos da fruta caem n'água, alvoroçando centos de peixinhos. Ao lado, na fronde de uma 'mangabeira', periquitos apreciam seus frutos, num barulho infernal. Contraditoriamente, uma capela de macacos bate 'jatobás' nos galhos de uma velha ‘aroeira’, quebrando suas cápsulas e se deliciando com a polpa do caroço. 'Yporã' explica que o barulho dos bichos não assusta uns aos outros, pois é estratégia para afastar animais intencionados a caçá-los. Em poucas passadas a mata invade o rio, que vai se diluindo lentamente num varjão sem fim. Uma nata vermelha em meio a uma espécie de grama se expande pelas margens, descortinando a paisagem deslumbrante do 'rio Pardo'. Um bando de 'pacas' caminha por uma clareira natural. Os filhotes, espertos, fazem por onde não se perderem dos adultos. Logo adiante, 'seriemas' bicam um imenso cupinzeiro, alimentando-se fartamente. Um bando de 'veados-campeiros' descansam sob uma figueira. Em outro ponto a paisagem se torna rósea de 'tuiuiús' caminhando elegantemente pelo varjão, contrastando com a brancura das ‘garças’. Ali se encerra o córrego "Guaçu". As águas apressadas do gigantesco rio deslizam silenciosamente, envolta por mata cerrada. Na outra margem uma família de onça pintada vive momentos de lazer. O pai, de porte majestoso parece montar guarda sobre o galho de uma "perobeira-rosa" que avança sobre as águas. A mãe-onça lambe suas crias, sem manifestar qualquer preocupação. O céu azul-escuro, pincelado de extratos cirrus prenuncia chuva. Uma revoada de canários colore a paisagem de amarelo. As frondes das árvores estão multicoloridas por toda espécie de aves, certamente atiçadas pela abrupta mudança no clima. Seus chilreios causam barulho ensurdecedor. José atola ora uma perna ora outra no solo pantanoso e começa a rir do próprio desconcerto. Ele não entende como o índio anda com tanta desenvoltura num lugar tão acidentado. "Yporã' tenta explicar-lhe alguma coisa - fala alto - mas ele não consegue ouvir. De repente alguém cutuca José... - “Acorda, menino, já são seis horas; tá na hora de levar a lavagem dos porcos lá pro rio ‘Guaçu’”. Não se esqueça de passar no laticínio e pegar mais lavagem de soro. Tome café e vá ajeitar a carroça. Anda menino, depressa"! NATAL 25 DE JULHO DE 2015. OBS. A PINTURA ABAIXO É MERAMENTE ILUSTRATIVA.