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terça-feira, 6 de junho de 2017

Memórias de um pássaro



Poucos dias após a invasão das águas,
Alcei voo demorado sobre o cenário desolador.
Não fosse pelo meu bom senso de direção
Não saberia onde planava.
Desapareceu os mais espetaculares cartões postais, os quais nunca me cansei de admirá-los.
A bela confluência do Rio Pardo com o Rio Paraná dissipou-se.
O Porto XV de Novembro vestiu-se de água.
Os ribeirinhos vagavam como formigas envenenadas, pasmos, assistindo ao desaparecimento de sua história.
Por todos os lugares um coro de vozes dizia:
"Abriram as comportas da hidrelétrica!"
Para mim, abriram as portas do inferno...
Nunca vi tanta desgraça.
As águas estavam coalhadas de animais mortos...
Macacos, tatus, cobras, iguanas, coelhos, raposas...
Apodrecidos, deslizavam mansamente na correnteza, rijos, iguais a bonecos...
Era a Arca de Noé ao inverso.
Não sei o que fedia mais,
Se a decomposição das infelizes criaturas,
Ou a consciência das autoridades.
Por que não evitaram tanta destruição?
Proclamam-se o mais inteligente dos animais e destroem a si mesmos e a nós, como se nada fôssemos...
Quando vi os urubus cumprindo o seu instinto, percebi que a cena infernal era apenas o começo de uma grande tragédia que se instalava para sempre.
Os homens, autores do desastre ambiental, serão eternas vítimas.
Nós, animais sobreviventes de todas as espécies, migraremos para outros habitats, pois não nascemos para viver numa estufa.
Será difícil a readaptação, pois promoveremos desequilíbrios.
Como simples pássaro, creio que os danos promovidos contra os rios Pardo e Paraná, e às matas ribeirinhas ainda não geraram de todo os seus efeitos.
Sob esse mar de água, tal qual o centro de um vulcão, germina uma força desapressada, que mancomunada com os céus, o sol e os ventos, promoverão consequências graduais e perversas, que me levam a dizer: "não gostaria de estar aqui para vê-las". AGOSTO/2000

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