Alguém já escreveu que a História, em termos humanos, é feita de sucessivas biografias. Desnecessário ser gênio para entender que tudo e todos fazem História. Ela está no ar que respiramos e nesse exato momento fazemos História, brancos, pretos, índios, garis, senadores, coveiros, médicos, coletadores de palha de buriti, enfim.
No passado a História era norteada pela conveniência de quem a contava, seja o historiador, o jornalista, os próprios órgãos etc. Chamamos isso de Velha História. Nela o acontecimento não era visto de maneira imparcial. Os grandes feitos eram atribuídos às pessoas que estavam no topo da pirâmide. Quando um pobre se sobressaia e precisava ser contemplado na História, o faziam de maneira diluída, superficial. Quando era negro, piorava situação. É só re-observar os livros didáticos d’outrora como pequeno exemplo.
Tendo tomado conhecimento do episódio da demolição da residência onde morou o Sr. Ênio Martins e a D. Diva Câmara Martins, cuja história (política e social) todos nós – pessoas mais velhas, filhos de pioneiros – conhecemos em detalhes, surpreendi-me por um prisma. Mas por outro prisma, compreendi friamente.
Óbvio que se tratava de um exemplar cheio de história e significados. Construção muito bem feita, datada de 1964 e moderna para o seu tempo; uma das primeiras casas de alvenaria de Bataguassu. Transformá-la num museu era nobre demais para ser verdade. Seria muito altruísmo e desprendimento. Mas algo é digno de reflexão: Quando eu morava aí em Bataguassu, D. Diva já havia me dito que pretendia tornar sua casa um Museu. O mesmo ela disse a minha irmã Regina, em entrevista.
Precisamos lembrar que D. Diva era uma pessoa muito esclarecida, tinha consciência de que a palavra falada é levada pelo vento – não vale quase nada nos dias de hoje – e a palavra escrita em papel (e registrada em cartório – diga-se de passagem) torna-se oficial. A coisa transformada em testamento torna-se inviolável, mesmo que herdeiros a contradigam.
Mas isso não foi feito. Até mesmo a própria D. Diva cometeu esse lapso, provando o quanto somos humanos e falhos. Ela que passou a vida elaborando os documentos mais sérios em termos cartoriais, sabia melhor que todos, que em termos legais vale o que está no documento assinado e reconhecido. Não havia e tampouco há de que reclamar hoje. Resta reconhecer o que sobrou da cidade e buscar políticas públicas para manter. Existem, inclusive, outros exemplares contemporâneos e até mais antigos.
A matéria feita no jornal Perfil News traz depoimentos de um neto tecendo críticas aos tios que escolherem herdá-la nos moldes tradicionais, ignorando o gosto da mãe/avó. A atitude da família, embora chocante, não é crime, é apenas lastimável. Indiretamente houve uma opção pela demolição, uma escolha em não acolher o pedido da própria genitora. Quem somos nós?
O povo brasileiro, salvas algumas exceções, realmente está anos-luz de entender e brigar pela salvaguarda de sua História e de sua Memória. Num exemplo simples, podemos usar a nossa própria Bataguassu. Quem sabe quem foi Ênio Martins? E Diva Câmara Martins? Qual o legado deles? Suponhamos que alguém distribua por Bataguassu 200 pesquisadores de História Oral e os mesmos façam essa pergunta em todos os quarteirões de toda a Bataguassu.
Com todo o respeito que eu sempre tive e permanecerei tendo por esses dois cidadãos bataguassuenses, mas pouquíssimos responderão com propriedade. Muitos não saberão nada. E agora, com a demolição da casa na qual germinou muitos projetos, cúmplice da História da cidade, inclusive Peri Martins morreu nela num dia de eleição (meu pai contava isso com detalhes), o ex-governador Wilson Barbosa Martins (in memorian) se hospedava ali, pois era irmão do Sr. Ênio, etc etc etc, jogou-se uma camada de pó ainda mais fornida sobre a história dos mesmos. A referida casa garantiria a preservação de suas memórias, já que seria um Museu, e nela residiria uma excelência nesse aspecto. Infelizmente poucos lêem a ponto de desconhecer detalhes básicos da nossa História.
A mesma pergunta poderá ser feita sobre Jan Antonin Bata – pasmem – o fundador do município! Qual bataguassuense é capaz de falar com fluência sobre ele? Alguém pode discorrer sobre Isac Cardoso Lopes? Dalvina Dias Barroso? O legado cultural de Júlio de Oliveira Filho? O sino doado à Matriz. Quem o fez? Quem pode dar uma palavrinha sobre Domício de Aragão Bulcão? E o professor Bulcão da época dos Lima? Iracema Sampaio? Shiguetsugo Kawanamy? Quem ousa dizer algo sobre Joaquim Simplício da Silva? E o próprio construtor da casa da D. Diva, alguém sabe? Sobre isso, em breve postarei um texto pertinente.
Embora alguns possam entender de outra forma, eu não estou diminuindo ninguém, apenas reflito uma problemática real, abstido de emoção. Haverá, sim, quem poderá falar sobre tais pessoas com propriedade, mas quantos bataguassuenses? Quem? Onde estão? Poucos se preocupam com a História e a Memória. Prova disso é que nas redes sociais houve quem criticasse quem criticou a demolição. Vi até – pasmem – professores com tal discurso. É o fim da picada, pois o olhar de um professor deve educar.
Mas, voltando à reflexão inicial sobre a História ser de todos. Precisamos ler sobre a Nova História, os olhares modernos de grandes historiadores e excepcionais jornalistas que estão recontando as mentiras que nos contaram na escola do passado. Nosso olhar deve ser crítico quando o assunto é História, por mais que espaços de memória nos emocionam. Gestores visionários e competentes de todas as épocas devem levar a juízo popular seus projetos quando pretendem mexer em prédios e espaços públicos.
Falta à grande parte do povo, com todo o respeito, reconhecer que foram educados de maneira a endeusar uns e esquecer outros. Recobrimos alguns de louros e pedras preciosas em detrimento de diversos atores da História, muitas vezes simples, mas tão importantes quanto o outro. O correto é que todos sejam referenciados, do contrário não estará contando a História, mas a história “conveniente”. A História deixa de ser História quando omitimos parte de seus atores em detrimento de preconceitos e estigmas de várias espécies.
Não foi boa para a História de Bataguassu essa demolição, mas era direito da família. Ninguém deve obrigar ninguém a agir com altruísmo. A atual demolição é diferente da ação imperdoável contra o prédio original da Prefeitura Municipal, verdadeiro atentado à História, mesmo não sendo tombado. Era um patrimônio histórico municipal por excelência. Mesma coisa a Praça Jan Antonin Bata. Foram construções pertencentes, por excelência, ao Poder Público. Não careciam ser compradas, muito menos ser vendidas ou descaracterizadas.
Ver aquelas “caixas de sapato” no lugar do belíssimo exempla demolido sem necessidade, fere o olhar dos que tinham consciência daquele grande monumento. Negaram aos nossos filhos e netos o direito de contemplar a sua História. E quando derem conta será tarde.
Mas é isso. Fazemos o que somos.
Deixo essa reflexão por hoje, esperando que possa servir a alguém. Urge às autoridades se reunirem e elegerem definitivamente o que pretendem salvaguardar de Bataguassu, buscando a melhor forma de aquisição, acaso consistirem em patrimônio privado. Ao povo, resta tomar consciência e reconhecer que é parte dessa decisão.
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